Páginas

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Aprendi vendo



Quando ainda garoto, penso, tinha não mais de 10 anos.
Garoto, o mais velho de uma família que se tornou numerosa, era o encarregado quase que diariamente a ir no açougue, buscar os pedaços que minha mãe pedia.
Também era comum depois da escola correr pelas estradas, ruas e vielas do Bairro e não raro, ou quase sempre me deparava no matadouro do Sr. Miguel Napoli e via o abate dos animais que vinham quase sempre da região serrana, descendo a Serra da Veneza, então Distrito de Criciúma.
Eram animais bravios, xucros e violentos só dominados pelos treinados cães do matadouro.
Certo dia presenciei um boi de carro, portanto manso, sendo levado para o brete por um peão do açougue.
Ao contrário dos demais ia lentamente, mas tranqüilo sem opor resistência.
Na medida em que adentrava pelo corredor da morte, aquele animal deixou derramar lágrimas dos seus olhos, cabisbaixo, trôpego, era violentado pela tríade de ferro sobre o seu lombo, cada espetada dava um ou dois passos a frente em direção ao sacrifício.
No local do abate, orelha caída, aceitava passivamente o desfecho, uma estocada com uma adaga fina na jugular sobre a veia aorta e aos poucos a vida foi deixando-lhe o corpo pelo sangue que se esvaia aos borbotões.
Não deixou de chorar, desde o primeiro momento sabia que ia morrer de uma forma violenta e sem contemplação, aos poucos foi dobrando os joelhos sem um mugido, seus joelhos suportaram o corpanzil ainda por um tempo, até que seus oitocentos quilos esparramaram-se na laje fria, seu último espasmo foi uma lágrima sofrida entre as pálpebras que não se fecharam e parece contemplava a vida que se esvaia.
Esta cena ficou firme na minha memória, dias depois comentei com meu pai e ele me disse: “Se boi soubesse a força que tem, não puxava carro”.
Anos depois, já adulto e trabalhando como torneiro de manutenção na Serra Catarinense fui convidado por amigos para participar de um evento que fazia parte da cultura serrana que consistia no remanejamento e na castração de terneiros de ano.
Era uma festa, os peões jogam o laço nas patas dianteiras ou derrubam o terneiro a unha, ambos, animal e peão mostrando a sua bravura onde o primeiro é sempre um perdedor.
Derrubado o animal vem o castrador com uma lâmina afiadas e retira os testículos do bezerro dando uns pontos de linha para não haver infecção.
Confesso não fiquei muito entusiasmado com a lida, ao som de um acordeom que parece chora, os peões bebendo canha fazem uma festa, principalmente na hora de por os testículos no sal e jogarem no fogo, o calor faz que este pedaço de carne cozinhe e arrebente a pele,  transformando-se  num belo ornamento amarelo parecendo a gema de um ovo de galinha, confesso que tive receios para saborear aquilo, mas depois de degustar o primeiro me fartei tomando pinga e comendo ovo de touro.
No outro dia, meio de ressaca, levanta-se cedo, toma-se um Camargo e se vai para o entorno do fogo onde corre chimarrão de queimar os beiços, mas a surpresa fica pelo convite para presenciar o abate de uma vaca para o churrasco do almoço que nunca é antes das duas da tarde.
De forma simples na linguagem campeira, sou informado que aquela vaca, já produziu mais de treze crias, que tem mais de quinze anos e que no inverno quase morreu de magra. Olhei para o animal que estava preso por um laço e não vi um animal fraco, mas sim uma vaca gorda cuja pelo  reluzia.
O dono da invernada me diz que eu iria experimentar uma carne macia, tenra e saborosa. O segredo estava exatamente pela condição de magreza em que ficou o animal. Ao engordar as carnes se renovam adquirindo uma textura inimaginável para o paladar dos carnívoros.
A vaca foi levada para o tronco e para surpresa minha vi lágrimas derramarem de seus olhos, disse para quem estava do meu lado, - Este animal esta chorando. E ele me disse: -Sabe que vai morrer.
Por duas vezes vi animais bovinos domesticados chorarem diante da morte.
Hoje depois de ter trabalhado uma vida inteira, lembrei de milhões de aposentados que durante anos a fio deram do seu suor para o enriquecimento de uns poucos e são jogados numa condição de miserabilidade digna de quem vai para o matadouro, sem saúde, sem assistência a saúde e com um rendimento que vai ano a ano ficando menor.
Se não usarmos a força do boi vamos chorar piamente diante do calabouço da vida e morreremos sem nenhuma consideração, a morte será um alívio para os parentes mais próximos que nos suportam. Lembro de um ensinamento do meu pai quando não mais foi possível me manter na escola regulamentar: -“Filho, os homens aprendem de três formas, lendo, ouvindo e apanhando.
Aprendi vendo.


  

Um comentário:

  1. Companheiro !
    Fizeste lembrar que nos trabalhadores somos sufocados e morremos todos os dias pela ganacia e nossa ignorancia, em apostar sempre e inalte - cer aqueles que nos igordam e ao final de nossas vidas derramamos lagrimas, pois somos roubados em nosso direito de morrer dignamente.

    ResponderExcluir